sexta-feira, 13 de junho de 2008

Lá tão longe, mas bem mais perto

Aqui, longe do reboliço e do ruído sufocante da civilização, rodeado por serras mais ou menos esquecidas, virgens e imutáveis, onde o tempo descorre ao ritmo pachorrento mas forte dos raios do astro rei e onde o silêncio impera, agora que caiu a noite e o vento sossegou, esquecidas as agruras dos homens que só aqui chegam pelo telejornal que se escuta à hora do jantar, dou por mim numa retrospectiva mental de tudo o que fiz, disse ou pensei até aqui. Como se nada mais tivesse pela frente de novo, estimulante e desconhecido, como se a vida se tivesse tornado como a palma de uma mão, familiar, decorada, desinteressante.

Conto cada murmurio que ouço de tão parcos, sei de cor a paisagem que alcanço e que só muda de cores conforme as estações do ano e as flores do mato. Consigo identificar os caminhos antigos que já não existem à custa do abandono a que os votaram, décadas e décadas de uso desperdiçadas, passos futuros que nunca mais por ali passarão, memórias de todo um povo que se esvai sem que ninguém com isso se importe ou fira, a não ser por quem eles passou vezes sem conta.

As casas agora são diferentes, modernas e confortáveis, com os tiques de comodidade vindos das cidades e que aqui destoam gritantemente. As gentes que as habitam sazonalmente, habituados que estão à vida parva e individualista dos prédios nas metrópoles, adoptam aqui o mesmo estilo; fecham-se em casa e ignoram que o mundo real acontece lá fora, que os pássaros vão continuar a entoar os seus cantos e que nunca repetem os sítios ou as sequências das notas que debitam sem desafinar. As nuvens com as suas originais formas, a brisa refrescante das tardes abrasadoras de verão, a água que corre nos ribeiros, tudo passa e não volta e tudo será ignorado e desvalorizado para verdades estáticas, forjadas e feitas para seres sós, inertes e amorfos.

Percebo a vida aqui. Vejo e percebo a lógica das coisas, o porquê dos equilíbrios e ordens seculares que se teimam em igorar, em benefício de uns, prejuízo de outros, indiferença de alguns ou descrença e desalento de uns poucos. Elas vão continuar a existir e persistir quer se queira quer não e por mais que se batalhe e evolua nunca as conseguiremos controlar ou ignorar.

Sei que amanhã estará tudo no mesmo sítio, do mesmo modo que sempre conheci. Nem as recentes sombras de coisas metálicas, frias e energéticas que se projectam nas serras por força e imposição dos homens, mudam isso. Nem mudarão. É a teimosia da natureza, a regeneração e imposição da sua vontade poderosa, forte e sábia, dia após dia, era após era. Em jeito de profecia bíblica, apocaliptica, descabida: assim foi e assim será!

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