quinta-feira, 3 de julho de 2008

Transcrições

Não digo que não possa acontecer, mãe. Mas não vai ser fácil. Estou mentalizado e preparado para ficar sozinho o resto da minha vida e, por estranho que lhe possa parecer, isso não me mete medo nenhum. Antes pelo contrário: talvez seja menos feliz ou a minha vida faça menos sentido, como a mãe diz, mas aprendi que assim tenho de certeza muito menos angústias e estou garantido contra sofrimentos e decepções que, a meu ver, também não fazem sentido. A verdade, mãe - e desculpe que lhe diga, mas a mãe é de outra geração - ... acho que não percebo as mulheres de agora. E não sei se quero ou se tenho interesse em tentar perceber.

(...)

Quero dizer, mãe, que para mim as coisas são simples: gosto ou não gosto, amo ou não amo. Se amo uma mulher, amo-a mesmo. Não tenho dúvidas, nem contradições, nem estados de espírito, nem outra vida onde ela não caiba. Para mim, que pouco percebo do assunto, o amor é sobretudo a ausência de perguntas, de dúvidas, de incertezas. É paz, segurança, eternidade. O meu pai nunca teve dúvidas se a amava ou não. Amou-a sempre, à maneira dele, que era a única que sabia. Amou-a uma vez, amou-a para sempre. Podia pôr tudo em causa, mas isso a mãe sabe que ele nunca pôs. E eu não percebo que as mulheres não pensem assim. Não percebo!

(...) o meu cavalo gosta de mim todos os dias. Compreende-me todos os dias, sabe o que eu quero e o mesmo se passa comigo em relação a ele. Se há um dia que eu não o monto, ele sente saudades de mim e todos os dias olha para mim como o seu melhor amigo.

(...)

Quem nunca sofreu por amor nunca aprenderá a amar. Amar é o terror de perder o outro, é o medo do silêncio e do quarto deserto, de tudo o que se pensa sem poder falar, do que se murmura a sós sem ter a quem dizer em voz alta. É preciso sentir esse terror para saber o que é amar. E, quando tudo enfim desaba, quando o outro partiu e deixou atrás de si o silêncio e o quarto deserto, por entre os escombros e a humilhação de uma felicidade desfeita, resta o orgulho de saber que se amou.


> Miguel Sousa Tavares, Rio das Flores, 1ª edição, Oficina do Livro, Lisboa, Outubro de 2007, p. 371, 372 e 583    

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