segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Os três patinhos: um feio, outro bonito e outro que não sei qualificar

Não sei porquê e acordo de manhã com esta dos três patinhos: um feio, outro bonito e outro que não sei qualificar, na cabeça. Está a ficar preocupante! Não sei se será da falta de luz do sol, sol só, e de tempo para a aproveitar se é mesmo a falta de outra coisa qualquer que não quantifico no meu actual juízo.

Saio, como sempre, glorioso em cima da minha Vespa, mais um dia pela frente a porra dos patos, já os ouço e tudo, continuam comigo, rasando os carros na ponte, apitando ao taxista que se julga dono da estrada e da vontade dos outros e, acho, repararam também no decote pronunciado da miúda gira que guia o seu BM de vidros fechados, presumo, com o AC ligado para nos proporcionar tanto esplendor logo pela manhã, sem presságio do frio que sinto cá fora. Tenho que me livrar disto, penso, mas como?

Nada como trabalhar, receber telefonemas, fingir-me de muito ocupado. Sim, sou só ocupado. Por momentos ou umas horas, não o sei bem, perco os patos. Bolas, a memória dos patos da Gulbenkian e das alusões que lhes fazemos tantas vezes, está a produzir os seus efeitos. Dizias-me que no horóscopo de hoje estava um dia calmo para os nativos do meu signo. E que o sonho que tive, sem patos (de onde raio terão vindo?), prenunciava sorte e reconhecimento, quiçá roçando a riqueza monetária que não ambiciono. Tudo num só dia? Já estou cansado. Eis que voltam os patos!

Dou por mim numa reunião, teria já almoçado e, pelo peso que sentia no baixo-ventre, teria sido bom. Recordo-me agora dos cogumelos com arroz e posta que enfardei alarvemente, do meu tupperware requentado no micro-ondas da empresa. Corrijo, no micro-ondas que nós compramos e que a empresa amavelmente nos deixa alojar nas suas instalações; obrigado patrãozinho (ou será patrõezinhos?), sempre poupamos uns patacos aqui que nos dás ao fim do mês.

Mas dizia, dou por mim numa reunião. Momento mais conceptual do que produtivo e acabo por me afastar inevitavelmente do assunto aborrecido e sem interesse, naquele momento. Talvez de imaginar que quando dali sair me espera o céu negro e uma cidade atarefada a regressar a casa ou dos bocejos que imito envergonhadamente, pelo cansaço de um fim-de-semana curto para tudo o que se quer fazer. Sei lá, que escolham a causa ou as duas! Os patos, neste sabe não sabe, velhacos, voltaram. Bolas! Bocejo é de tédio que à laia de tanto ter que pensar, só me ocorrem aves que grasnam. Nem contam, sempre me poderiam alegrar os longos momentos entediantes em que se me grudam aos pensamentos. Grasnam apenas. Não me alegram muito, por isso.

Livro-me enfim dos patos. Não sei como o fiz. Sei, agora, que até aqui os tinha esquecido algures no meu dia-a-dia. Cruzei-me com pessoas que olhavam para mim, perdidas no escuro que as envolvia, nos envolvia, apenas cortado pelos faróis dos automóveis e das luzes tricolores dos semáforos, ora passamos nós, os de quatro rodas, oram passam vocês os bípedes.

Gosto de pensar no que ocorre às pessoas ao caminharem, para mim, sem sentido, para elas por certo com destino, um meio e um final de caminho. E nos mais variados destinos. É um assunto recorrente, mas sempre me ocorre. E sempre acompanhado com o ditado, quem vê caras, não vê corações. Estenderia a vidas, preocupações, assuntos, desgraças, desencontros... sei lá. Passam por nós e partilhamos a breve existência de uma brisa que se cruza e trocamos, sem saber. De um desejo ingénuo que por vezes nos surge, de conhecer com quem nos cruzamos e sabermos o que o/a apoquenta ou o faz feliz. Mas há sempre algo que nos empurra e obriga a continuar, ignorando o desejo e o outro que passou por nós, sem sabermos sequer se pensa ou caminha vazio e tranquilo com a sua existência solitária. Acontece-me muito.

Olha, esqueci os patos todos. O feio, o belo e o outro que não sabia qualificar e continuo sem saber fazê-lo. Se um é feio e o outro é belo, são apostos. Lógica teria que, para não proporcionar tamanho decalage (gosto muito deste “palavrão”), o outro ficasse no meio e assim, fosse, nem feio nem bonito. Seria... assim-assim... Mas porque é que não pode ser bonito? E assim ficariam dois bonitos e um feio. Aumentaria o fosse... Temos sempre a mania de qualificar estaticamente as coisas. Estanque. E feio? Dois feios e um bonito?

É um bocado indiferente o que me parecem os patos. As pessoas também. Mas teimo sempre em tipificar as coisas. Todas têm que estar nos mesmos estanques subjectivos de qualificação que imponho. Eu é que! Eu é que sou!

De repente apanho um estaladão. Forte, diria viril, não fosse saber bem de onde não vem. Fico atarantado, sem saber se levei na face esquerda, na direita ou sequer se isso é importante saber. Desperto do torpor intelectual que estava com estas divagações. Perdi tudo. Insisto em perder, mesmo quando consigo amealhar alguma coisa. E, no meio desta dor, física, psicológica, sentida e infligida, ouço dizerem: estúpido, porque é que não olhas para mim? À minha frente ninguém... Olho ao redor... E estou sozinho!

De mim para mim mesmo, pergunto-me de onde raio saíram eles, os patos, logo de manhã? Onde me abandonaram eles, agora, com a mesma facilidade que se apoderaram de mim, pela manhã? Afinal, tenho uma mão marcada na face. Vermelha, vermelha.

Alguém foi!

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